terça-feira, 18 de novembro de 2008

Ano Machado de Assis

Consagrado ao maior escritor brasileiro de todos os tempos, o ano de 2008 não poderia passar sem essa menção, no âmbito da Câmara dos Deputados.

Orgulho máximo das letras nacionais, o único, ao lado de Guimarães Rosa, a mobilizar estudiosos entusiastas nas maiores universidades do mundo, Machado de Assis é um dos maiores gênios da história do Brasil – sua obra primorosa, tão arrebatadora quanto intrigante, consegue reunir as qualidades exigidas pela grande literatura: ser imortal, ainda que retrato de seu tempo, ser universal, ainda que espelho de sua aldeia.

Sim, pois era o Rio de Janeiro de algumas dezenas de milhares de habitantes, o palco dos romances e contos de Machado de Assis, o mulato pobre e doente, que se tornou uma das mais prodigiosas e sensíveis inteligências de que se tem notícia no País.

Muitas lendas se criaram em razão de sua origem, no Morro do Livramento, de sua infância marcada pelo preconceito e pela orfandade, pela perambulação cotidiana nas ruas da capital imperial.

Afinal, o pequeno engraxate, o vendedor ambulante, o coroinha, ou tantos outros ofícios que lhe atribuam seus biógrafos, transformou-se no mais habilidoso e erudito dos escritores brasileiros, virtuose de uma técnica inconfundível, absolutamente consistente em termos de visão de mundo, instaurador de uma modernidade insuspeita em meados do século XIX.

O fato é que, alfabetizado em casa, literato em uma casa sem livros, autodidata no domínio das línguas francesa e inglesa, Joaquim Maria Machado de Assis, nascido no Rio de Janeiro em 21 de junho de 1839, ganhou notoriedade e prestígio ainda jovem, a despeito de sua natural timidez, por força de seu talento colossal.

O primeiro a descobri-lo, com apenas 17 anos, foi o já conhecido Manuel Antônio de Almeida, autor das famosas Memórias de um Sargento de Milícias, o qual, incumbido de demití-lo da Tipografia Nacional, onde era sempre surpreendido a ler em algum canto, terminou por promovê-lo, garantindo-lhe a primeira oportunidade profissional.

Machado começou a escrever assim que se introduziu no ambiente da Corte, na boemia do Centro, na efervescência da redação dos jornais. Lia tudo – inclusive filosofia – e parece ter absorvido do inglês Laurence Sterne e do alemão Schopenhauer, o horizonte sobre o qual construiu sua obra excepcional.

O casamento feliz com Carolina Novais, sua companheira de toda a vida; a bem-sucedida carreira como funcionário público e a notável aceitação de seus escritos nos jornais da época, já indicavam a superação definitiva de uma fase de dificuldades e apreensões.

Altamente respeitado e festejado no meio literário, já considerado o maior romancista de seu tempo, Machado se elevaria ao patamar da glória com seu quinto romance, Memórias Póstumas de Brás Cubas, considerado, desde sempre, no Brasil e no mundo, como uma das maiores obras-primas da literatura universal.

Marcando não apenas uma nova fase em sua literatura, uma nova fase na literatura brasileira, Memórias Póstumas é a consagração do famoso inconfundível estilo machadiano. Nas páginas escritas por um defunto-autor, com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, apresenta-se um romance absolutamente revolucionário, que anteciparia noções de psicanálise e inversões de paradigma introduzidas pelo Modernismo.

Ali, a visão de mundo de Machado de Assis, por tantos críticos entendida como realista e pessimista, consolidava-se para além do realismo consagrado por seus contemporâneos. Mais do que a uma escola estilística, Machado filiava-se a uma busca incessante pelas contradições da alma humana, a oscilar entre a grandeza e a miséria, em meio às circunstâncias da vida e da História.

Foram centenas de contos e crônicas publicados em vida, poemas e peças de teatro, e oito romances, entre eles o incomparável Dom Casmurro, outro monumento da literatura universal. Aqui, onde o leitor se deixa enredar por artifícios da narrativa e sente o desafio da ambigüidade, Machado de Assis introduz a vertigem das leituras contraditórias, que se alinha entre suas características mais marcantes: do ponto de vista da forma, a extraordinária agilidade das frases bem-compostas, mesmo em registro de coloquialidade, e a exploração da beleza da língua portuguesa, com dicção abrasileirada; do ponto de vista do conteúdo, a observação da conduta humana em situações paradigmáticas, a composição de personagens de intensa densidade psicológica, as imposições e hipocrisias do convívio social.

A grandeza da obra machadiana, perfeita combinação de erudição, rigor, humor e elegância, transcende as análises e categorias críticas, e está destinada a atravessar os séculos, iluminando a consciência humana sobre as imensas ambigüidades de sua própria condição.

Sem dúvida alguma, contribuiu de modo definitivo para a elaboração de uma literatura propriamente brasileira, aperfeiçoando, com genial modernidade, o caminho que se trilhava desde o Romantismo no Brasil.

A eleição do ano de 2008, centenário de sua morte, como ano de Machado de Assis, muito mais do que uma homenagem, é a oportunidade de manter e reavivar o interesse em torno de sua obra, em tempos de multimídia, avalanche de informações, comunicação em tempo real.

O Partido da República, que ora temos o prazer de representar, não poderia deixar de participar desta Sessão Solene, manifestando a convicção de que o usufruto da herança machadiana, celebrada em todo o mundo, deva ser plenamente incentivado, nas escolas e universidades, como uma das mais brilhantes expressões da cultura nacional.


Discurso por mim proferido na Sessão Solene em homenagem ao Ano Machado de Assis. Câmara dos Deputados (CD), 18 de novembro de 2008.

Nenhum comentário: