O Mercosul de Lula e Cristina
Alexandre Barbosa e Ricardo Sennes
Para boa parte dos analistas brasileiros passou despercebida a importância do resultado das recentes eleições na Argentina. Destacou-se o suposto populismo da política econômica kirchnerista, mas pouco se avançou no entendimento da nova fase por que passa este país. Pouco se falou também do aspecto estratégico que pode exercer a aliança Brasil-Argentina no presente quadro regional e internacional. Procura-se, neste artigo, analisar os motivos por trás da relação controvertida entre Lula e Nestor Kirchner no início de ambos os governos. Em seguida, discute-se como se deu a recuperação da economia argentina e seus impactos sobre o Brasil. Finalmente, ao analisar o padrão recente das relações econômicas entre os países e o andamento das negociações intra e extra-Mercosul, defende-se a necessidade de uma política de maior estreitamento da relação bilateral.
Lula e Nestor Kirchner atritaram-se bastante logo após a eleição do argentino. Abstraindo as diferenças de temperamento, geralmente exacerbadas pelos analistas, dois fatos concretos explicam esta relação conturbada ao menos até 2004. Primeiro, a diplomacia do nosso Ministério da Fazenda daquele tempo fez o máximo para distanciar o Brasil da Argentina durante o default e as negociações que se seguiram. Fez isso por temer um possível contágio. Foi, porém, um equívoco que resvalou para a agenda do Mercosul, contaminando as relações entre os dois países. Por outro lado, o governo argentino retrucou fazendo da retórica nacionalista um sustentáculo da sua política econômica de "reindustrialização", subordinando a agenda integracionista a interesses internos e imediatos.
A distensão das relações foi se dando aos poucos, para o que contribuiu a própria recuperação da economia argentina, a cautela da diplomacia brasileira e os ganhos econômicos oriundos da relação bilateral. Não custa lembrar que, entre 2003 e 2007, o crescimento anual da economia argentina foi de aproximadamente 9%. Três pilares permitiram este quadro impensável no auge da crise com seus corralitos e panelaços: o "desconto" obtido em parte importante da dívida pública; a manutenção de um câmbio desvalorizado; e a adoção de uma política fiscal, que se apóia nas retenções sobre as exportações. O setor público obteve superávits nominais. Os investimentos elevaram-se, junto com o nível de consumo e as exportações, inclusive industriais. O desemprego e a pobreza caíram pela metade.
Muito provavelmente, o próximo governo não conseguirá entregar uma evolução tão favorável em termos econômicos e sociais. Investimentos em infra-estrutura se fazem necessários, a inflação segue em trajetória de alta e reajustes das tarifas públicas são esperados. A taxa de crescimento, tudo indica, se desacelerará um pouco. De qualquer maneira, não se trata de uma expansão fictícia. Hoje, o PIB argentino situa-se a um nível cerca de 20% acima do verificado em 1998, ou seja, antes da recessão que acometeu o país entre 1999 e 2002. Como o Brasil foi afetado pela recuperação argentina? A despeito do ceticismo de parcela das instituições empresariais e de alguns congressistas brasileiros - para quem o Mercosul se encontra estagnado e a Argentina se revela um parceiro de menor importância - vale a pena lançar mão de alguns indicadores.
O Brasil apresentou um superávit comercial de US$ 3,7 bilhões em 2006 com o vizinho platino, contra um déficit de quase US$ 2,4 bilhões em 2002, no auge da crise. Quando analisamos apenas os bens industriais, o superávit brasileiro chega a quase US$ 6 bilhões no ano passado. Este desempenho apenas se explica pela existência do Mercosul. Quer dizer então que, ao contrário do que se imagina, os argentinos são os grandes perdedores na relação bilateral? Certamente não. Este déficit está concentrado em alguns setores: eletroeletrônico, automotivo, química e máquinas. O que a Argentina faz é transferir parte do multiplicador do investimento para o Brasil. Porém, paralelamente, o dinamismo das exportações industriais daquele país se deve à capacidade de absorção de nosso mercado. Entre 2003 e 2006, as exportações industriais argentinas para o Brasil duplicaram. A corrente de comércio entre os dois países já superou a casa dos US$ 20 bilhões anuais, acima dos US$ 14 bilhões de 1998, quando se chegou ao pico dos anos noventa. Estes dados não indicam que o Mercosul já "deu tudo o que tinha que dar". Apenas apontam que o grau de integração entre as duas economias - não só comercial, mas também produtiva - já se encontra num tal patamar, que o intercâmbio bilateral mostra-se claramente pró-cíclico.
Colocando a questão sob outro prisma, pode-se dizer que o momento nunca foi tão propício como agora para se ousar na elaboração de uma agenda propositiva para o Mercosul, que vá para além do comércio, de modo a abarcar outras dimensões da realidade econômica. Hoje, não apenas com a Argentina, mas com os demais países da região, alguns dos principais pontos da agenda econômica referem-se à agilidade logística e a questões regulatórias.
O aprofundamento da integração produtiva depende essencialmente dessas questões e da capacidade de se formular políticas setoriais coerentes no âmbito regional. Mais importante ainda, além da coincidência em termos de ciclo econômico, as diretrizes de políticas externa dos países caminham no mesmo sentido, ainda que com diferenças de enfoques e prioridades em alguns temas. Brasil e Argentina têm assumido posições muito próximas no que tange às negociações no âmbito da OMC e com a União Européia. Ambos os países possuem uma visão convergente com relação à agenda sul-americana e podem, de maneira associada, atuar para fazê-la avançar.
O caso recente da Venezuela é elucidativo. Ambos afirmam que têm a ganhar em termos econômicos com a entrada desse país no Mercosul, além de temerem o isolamento do país andino. Nessa perspectiva estratégica, quanto mais próximos estiverem, melhor conseguirão lidar com os imprevistos trazidos pelo presidente Hugo Chávez.
Com Lula e Cristina, as oportunidades para o alargamento e aprofundamento do Mercosul parecem alvissareiras. Se mais uma vez a relação bilateral ficar aquém do potencial, não conseguindo vitaminar a agenda da integração regional, é porque as políticas externas de Brasil e Argentina não terão amadurecido o suficiente para posicioná-los de forma soberana e competitiva neste cenário global caracterizado pela versatilidade das opções geopolíticas e das estratégias econômicas.
Alexandre de Freitas Barbosa é doutor em Economia Aplicada pela Unicamp. Ricardo Sennes é doutor em Relações Internacionais pela USP, professor da PUC e sócio da Prospectiva Consultoria.
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