sábado, 27 de dezembro de 2008

A viagem do elefante

Existe uma máxima da literatura segundo a qual todos os escritores acabam sempre escrevendo sobre si mesmos, por mais distante que a história esteja de sua vida. Mas, segundo José Saramago, o novo A viagem do elefante é seu livro que menos tem elementos pessoais, se comparado aos outros que publicou na carreira. Embora a ironia sempre tenha sido a tônica em vários de seus romances, esta é a primeira vez que o humor aparece de forma mais evidente, um paradoxo, porque, se a obra tivesse recebido influência de sua condição de vida na época em que escrevia, ela poderia ser outra, bem diferente.

Depois das primeiras 40 páginas, o português precisou interromper o trabalho por conta do agravamento de uma doença respiratória, que quase o levou à morte aos 85 anos – hoje, está com 86, comemorados no último dia 16 de novembro e, graças a isso, fez dedicatória à esposa Pilar Del Rio, a pessoa “que não deixou que eu morresse”. Ao sair do hospital, depois de alguns meses em recuperação, Saramago retomou o trabalho sem demora – dois dias depois de descanso domiciliar. “Estava às sombras de mim mesmo”, conta, referindo-se aos 51 quilos que pesava – bem menos do que o habitual, que beira os 70 quilos. Mesmo assim, a história seguiu sendo contada da maneira risonha como se via nas primeiras páginas, sem qualquer nota ou vestígio do que ele vivia internamente.

Saramago diz que essa verve humorística foi mantida, mas não de propósito, de forma consciente. “Não é que parei num ponto e retomei depois, exatamente da maneira que estava fazendo no começo; isso não pode ser afirmado. O livro é assim porque quis ser assim, e isso parece um absurdo por ser o autor e não ter nenhuma autoridade sobre aquilo que escrevo – temos menos autoridade do que se julga ter –, mas o que é normal é que aquela corrente que se tem no começo da obra, e nos leva ao longo da história, não pôde ser contrariada”, conta.

O enredo é simples e trata da viagem de um elefante indiano, o Salomão, de Lisboa até Viena, na Áustria, em meados do século 16. O animal da coroa portuguesa, que permanecia esquecido e sem serventia nenhuma para o país, foi oferecido como presente de casamento ao arquiduque austríaco Maximiliano II pelo rei de Portugal, Dom João III e sua esposa Catarina de Áustria. Os monarcas preparam então a viagem de Salomão, primeiro até a Espanha e depois até Viena. No caminho, diversas passagens arrancam gargalhadas do leitor como as que tratam da relação entre o responsável pelo elefante, o personagem indiano Subhro, e o comandante da tropa real portuguesa.

PARADOXO
Embora Saramago veja um paradoxo em relação ao tipo de texto que escreveu e à condição de vida sob a qual o concebeu, existe a possibilidade de interpretar que o tom humorístico – natural da história, segundo o escritor – pode estar ligado à sua experiência pessoal. Talvez Saramago esteja diante da perspectiva da morte. E assim, ao invés de se deixar abater, parte para se manter alegre. Tanto que o humor, marca do livro, está estampado na própria figura de Saramago. Ele está bem e não aparenta sinais de doença ou fraqueza, embora fisicamente, pela idade, as condições sejam difíceis. Agüentou sem reclamar uma hora e quinze minutos de perguntas durante a coletiva de imprensa promovida na última semana de novembro, por conta da abertura da exposição José Saramago: consistência dos sonhos (ver boxe), na qual esta matéria está ancorada.

O autor não perdeu a chance de dar respostas ácidas, e bem-humoradas, a todos os jornalistas. Quando alguém perguntou se estar à beira da morte tinha mudado alguma coisa, disse que não. Para ele, mesmo que não tivesse passado pela doença, continuaria a dizer tudo o que disse na coletiva. Mas, talvez apenas duas coisas, que já havia dentro dele, podem ter se acentuado: a primeira é a serenidade; e a segunda, “a certeza de que não precisamos ler Paulo Coelho”, como brincou, citando na coletiva o escritor brasileiro.

Além da graça, outra marca de A viagem do elefante está na linguagem, que mescla palavras contemporâneas com as arcaicas dos séculos 16 e 17. Em um dos diálogos com Subhro, o conarca do elefante – que significa o seu responsável –, o comandante da tropa real chama o paquiderme de “abantesma”, palavra típica da época que, segundo o Aurélio, variava com pantesma, que significava fantasma, alma de outro mundo. Saramago chama a atenção para que, lida sob o aspecto da linguagem, a obra se torne ainda mais prazerosa. Porém, diz que esta decisão de mesclar as linguagens não foi proposital. De acordo com ele, mesmo antes da doença, quando começou a escrever, essa mistura foi aparecendo naturalmente, a partir da memória de um vocabulário de sua infância e adolescência que ficou acumulado. Mesmo sem intenção, Saramago acabou falando de si e chegou onde tinha que chegar. ©

Revista da Cultura edição 17 dezembro de 2008

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