Ao completar 100 anos neste mês, Claude Lévi-Straus ingressa no século 21 como o maior antropólogo vivo da história. A trajetória intelectual, responsável pela criação da antropologia estruturalista, começou a partir do conhecimento da diversidade indígena do Brasil.
Claude Lévi-Strauss comemora seu centésimo aniversário no dia 28 de novembro. E há muito o que comemorar, principalmente no Brasil, onde colheu as sementes que o levaram a se tornar um dos mais importantes antropólogos do século 20. O então indeciso professor de filosofia na França veio lecionar sociologia na recém-criada Universidade de São Paulo (USP), em 1935, e durante um período de quatro anos – até 1939 – mergulhou de cabeça na etnologia indígena. Ao conviver com a diversidade nacional, levantou grande parte dos pensamentos que serviram de base para a criação da antropologia estruturalista, corrente que ainda hoje influencia estudos em diferentes campos do conhecimento.
Atualmente, o antropólogo vive em Paris e mesmo aposentado visita freqüentemente o Laboratorio d’Anthropologie Sociale. Entre as homenagens que receberá, destaca-se um evento da Unesco em parceria com o Museu du Quai Branly, no qual serão expostos mais de 1.600 objetos que Lévi-Strauss reuniu das suas missões científicas ao longo da vida.
“É o definitivo pensador do nosso tempo, um dos seus críticos mais ferrenhos, buscando o passado por trás do presente, pesquisando e defendendo as sociedades indígenas contemporâneas sem se esquecer de levar em conta o modo como pensaram e como viveram tradicionalmente”, avalia a antropóloga Dorothea Voegeli Passetti, autora de Lévi-Strauss, antropologia e arte.
O grande etnólogo francês “nasceu” por mero acaso. “Minha carreira se decidiu num domingo de outono de 1934, às 9 horas da manhã, por meio de um telefonema”, escreveu Lévi-Strauss. Foi o diretor da École Normale Supérieure, que não nutria grandes simpatias por ele, mas o avisou de uma vaga para vir ao Brasil ensinar sociologia. “Os arrabaldes estão repletos de índios e o senhor poderá dedicar-lhes seus finais de semana”, disse o superior, dando-lhe até o meio-dia para se decidir. A isca funcionou: há tempos, se ressentia do que chamava de “ginástica intelectual vã” das suas funções, já que ficava distante da riqueza das experiências do real. A oportunidade era um bom pretexto para o filósofo frustrado iniciar seu ofício de etnólogo, ainda que nos fins de semana ou em suas férias. A partir das viagens e pesquisas etnológicas com índios kadiwéu e nambikwara, o antropólogo escreveu o celebrado Tristes trópicos, hoje considerado um verdadeiro manual da etnologia.
No tipo de trabalho que desenvolvia, Lévi-Strauss estava em sintonia com a tendência mais recente da França, representada pelo Instituto de Etnologia da Universidade de Paris, fundada por Marcel Mauss, que patrocinava pesquisas empíricas em lugares exóticos do globo. A partir dos anos 1930, ser um pesquisador “de gabinete”, como era, por exemplo, o célebre sociólogo Émile Durkheim, caiu em desuso e os jovens almejavam conhecer de perto a África, a Ásia e a América. Isso não deixará de influenciar a arte da época, em especial os surrealistas, críticos do antropocentrismo europeu, que desejavam ampliar as fronteiras do humano, afirmando que o homem não podia mais ser pensado sem seus duplos: os animais, as figuras monstruosas, os mitos e os primitivos. Amante das artes, filho de pintor, o antropólogo terá intenso contato com o referido grupo e com seu líder, André Breton.
Por causa da guerra, não pôde voltar à França depois da temporada no Brasil e instalou-se nos Estados Unidos, onde deu aulas na New School for Social Research, em Nova York. Lá, consolidou seu pensamento e deu uma guinada em sua vida, transformando-se de aprendiz de filósofo marxista em etnólogo brilhante. Na França, assumiu a cadeira de Antropologia no Collège de France, em Paris, escrevendo a maioria de suas grandes obras, como As estruturas elementares do parentesco (tese gestada durante sua estadia americana), O pensamento selvagem, Antropologia estrutural e Mitológicas. “Ele não só propôs uma nova antropologia como indicou uma nova maneira de ser antropólogo, desejando uma antropologia útil às nossas sociedades, tornando os homens mais humildes, descentrando-os em função do conhecimento que o ‘outro’ lhes oferece”, explica Dorothea.
GOLPE CONTRA O RACISMO
Sua maior contribuição é de uma simplicidade fundamental: não pode existir uma civilização absoluta mundial, porque a própria idéia de civilização implica a coexistência de culturas oferecendo entre elas o máximo de diversidade. Neste aspecto, ninguém deu um golpe mais violento no racismo do que Lévi-Strauss – como bem observou Pierre Bourdieu – e, talvez, poucos pensadores ensinaram as sociedades do mundo a ser mais humildes.
Impossível não notar nessa visão resquícios do jovem de 17 anos apaixonado pela política, um militante de esquerda que se pôs a devorar Karl Marx e participar de organizações socialistas. Mas, para além do idealismo, Lévi-Strauss encontrou no filósofo alemão a chave para a forma do seu pensamento, já que, por toda a sua vida, sempre construirá suas análises baseadas em modelos teóricos que permitem apreender a complexidade do real a partir de estruturas que a organizam.
“Esse entusiasmo por Marx nunca se aplacou e, raramente estudo um problema de sociologia ou etnologia sem reviver minha reflexão ao ler o 18 Brumário ou A crítica da economia política”, escreveu Lévi-Strauss. Com Marx, ele entenderá que o seu objetivo será construir modelos, estudar suas propriedades e as várias maneiras como eles reagirão no laboratório. Assim, em toda sua obra, o francês passa a reduzir um tipo de realidade a outra; percebe que a verdadeira realidade nunca se manifesta abertamente; enfim, sempre fica atento à relação entre o sensível e o racional.
VALOR PRIMITIVO
Para o etnólogo, “o conjunto de costumes de um povo é sempre marcado por um estilo; eles formam sistemas que existem em números limitados. As sociedades humanas, como os indivíduos, sempre escolhem certas combinações dentro de um repertório ideal que é passível de ser reconstituído. É como uma tabela periódica de elementos, em que todos os costumes aparecem agrupados em famílias”. Segundo ele, a estrutura dos mitos era idêntica em qualquer canto da Terra, confirmando que a estrutura mental da humanidade é a mesma, independentemente da raça, do clima ou da religião. A partir daí, criou o conceito de sociedades “frias” (primitivas), que se encontram “fora da história”, orientando-se pelo modo mítico de pensar, em que o mito é definido como uma “máquina de supressão do tempo”; e as sociedades “quentes” (civilizadas), que se movem dentro da história, com ênfase no progresso e na constante transformação tecnológica.
Se a ciência racionalista desprezava a mitologia, a magia e os rituais, Lévi-Strauss mostrou que esses eram recursos de uma narrativa da história tribal, expressões legítimas de manifestações de desejo e, por isso, análogas à ciência moderna, ainda que atingindo resultados diversos.
Após os terrores da Segunda Guerra, fazia sentido que sentisse admiração pelos povos primitivos, já que foi entre eles que encontrou a fraternidade. Ao mesmo tempo, ensinava que era impossível esquecer-se do conceito das diversidades e, logo, não se podia olhar para outras sociedades tomando como parâmetro a própria, afirmando superioridade sobre os chamados “primitivos”. Mais: era preciso reconhecer a força desses povos, capazes de elaborar uma sabedoria particular que os incitava a resistir a qualquer modificação de sua estrutura – que embora pudessem configurar, para muitos, uma sociedade sem progresso e parada, privilegiava a preservação da natureza, as regras matrimoniais destinadas a manter a fecundidade e o princípio político que abolia qualquer forma de decisão que não fosse baseada na unanimidade.
Para o antropólogo, o “pensamento primitivo” era, longe de simplista, algo complexo, sofisticado e que tendia mais à ordem do que as idéias de organização e progresso que as sociedades modernas estabeleciam como parâmetro, fatos que, para ele, podem ser fonte de desequilíbrio social entre seres humanos.
Passou então a atacar a “ilusão arcaica”, a crença de que o pensamento dos “povos primitivos” poderia ser comparado ao das crianças, como se eles fizessem parte da “infância da humanidade”, e as sociedades modernas, da fase adulta e madura. Ou seja, ensina que tudo o que é diverso de nós é tachado de “infantil” e “primitivo”, um erro grave e preconceituoso, resultado de uma típica visão distanciada que, no fundo, é fruto de uma relação entre dominantes e dominados.
Matéria de Carlos Haag publicada na Revista da Cultura, edição 16, novembro de 2008.
Atualmente, o antropólogo vive em Paris e mesmo aposentado visita freqüentemente o Laboratorio d’Anthropologie Sociale. Entre as homenagens que receberá, destaca-se um evento da Unesco em parceria com o Museu du Quai Branly, no qual serão expostos mais de 1.600 objetos que Lévi-Strauss reuniu das suas missões científicas ao longo da vida.
“É o definitivo pensador do nosso tempo, um dos seus críticos mais ferrenhos, buscando o passado por trás do presente, pesquisando e defendendo as sociedades indígenas contemporâneas sem se esquecer de levar em conta o modo como pensaram e como viveram tradicionalmente”, avalia a antropóloga Dorothea Voegeli Passetti, autora de Lévi-Strauss, antropologia e arte.
O grande etnólogo francês “nasceu” por mero acaso. “Minha carreira se decidiu num domingo de outono de 1934, às 9 horas da manhã, por meio de um telefonema”, escreveu Lévi-Strauss. Foi o diretor da École Normale Supérieure, que não nutria grandes simpatias por ele, mas o avisou de uma vaga para vir ao Brasil ensinar sociologia. “Os arrabaldes estão repletos de índios e o senhor poderá dedicar-lhes seus finais de semana”, disse o superior, dando-lhe até o meio-dia para se decidir. A isca funcionou: há tempos, se ressentia do que chamava de “ginástica intelectual vã” das suas funções, já que ficava distante da riqueza das experiências do real. A oportunidade era um bom pretexto para o filósofo frustrado iniciar seu ofício de etnólogo, ainda que nos fins de semana ou em suas férias. A partir das viagens e pesquisas etnológicas com índios kadiwéu e nambikwara, o antropólogo escreveu o celebrado Tristes trópicos, hoje considerado um verdadeiro manual da etnologia.
No tipo de trabalho que desenvolvia, Lévi-Strauss estava em sintonia com a tendência mais recente da França, representada pelo Instituto de Etnologia da Universidade de Paris, fundada por Marcel Mauss, que patrocinava pesquisas empíricas em lugares exóticos do globo. A partir dos anos 1930, ser um pesquisador “de gabinete”, como era, por exemplo, o célebre sociólogo Émile Durkheim, caiu em desuso e os jovens almejavam conhecer de perto a África, a Ásia e a América. Isso não deixará de influenciar a arte da época, em especial os surrealistas, críticos do antropocentrismo europeu, que desejavam ampliar as fronteiras do humano, afirmando que o homem não podia mais ser pensado sem seus duplos: os animais, as figuras monstruosas, os mitos e os primitivos. Amante das artes, filho de pintor, o antropólogo terá intenso contato com o referido grupo e com seu líder, André Breton.
Por causa da guerra, não pôde voltar à França depois da temporada no Brasil e instalou-se nos Estados Unidos, onde deu aulas na New School for Social Research, em Nova York. Lá, consolidou seu pensamento e deu uma guinada em sua vida, transformando-se de aprendiz de filósofo marxista em etnólogo brilhante. Na França, assumiu a cadeira de Antropologia no Collège de France, em Paris, escrevendo a maioria de suas grandes obras, como As estruturas elementares do parentesco (tese gestada durante sua estadia americana), O pensamento selvagem, Antropologia estrutural e Mitológicas. “Ele não só propôs uma nova antropologia como indicou uma nova maneira de ser antropólogo, desejando uma antropologia útil às nossas sociedades, tornando os homens mais humildes, descentrando-os em função do conhecimento que o ‘outro’ lhes oferece”, explica Dorothea.
GOLPE CONTRA O RACISMO
Sua maior contribuição é de uma simplicidade fundamental: não pode existir uma civilização absoluta mundial, porque a própria idéia de civilização implica a coexistência de culturas oferecendo entre elas o máximo de diversidade. Neste aspecto, ninguém deu um golpe mais violento no racismo do que Lévi-Strauss – como bem observou Pierre Bourdieu – e, talvez, poucos pensadores ensinaram as sociedades do mundo a ser mais humildes.
Impossível não notar nessa visão resquícios do jovem de 17 anos apaixonado pela política, um militante de esquerda que se pôs a devorar Karl Marx e participar de organizações socialistas. Mas, para além do idealismo, Lévi-Strauss encontrou no filósofo alemão a chave para a forma do seu pensamento, já que, por toda a sua vida, sempre construirá suas análises baseadas em modelos teóricos que permitem apreender a complexidade do real a partir de estruturas que a organizam.
“Esse entusiasmo por Marx nunca se aplacou e, raramente estudo um problema de sociologia ou etnologia sem reviver minha reflexão ao ler o 18 Brumário ou A crítica da economia política”, escreveu Lévi-Strauss. Com Marx, ele entenderá que o seu objetivo será construir modelos, estudar suas propriedades e as várias maneiras como eles reagirão no laboratório. Assim, em toda sua obra, o francês passa a reduzir um tipo de realidade a outra; percebe que a verdadeira realidade nunca se manifesta abertamente; enfim, sempre fica atento à relação entre o sensível e o racional.
VALOR PRIMITIVO
Para o etnólogo, “o conjunto de costumes de um povo é sempre marcado por um estilo; eles formam sistemas que existem em números limitados. As sociedades humanas, como os indivíduos, sempre escolhem certas combinações dentro de um repertório ideal que é passível de ser reconstituído. É como uma tabela periódica de elementos, em que todos os costumes aparecem agrupados em famílias”. Segundo ele, a estrutura dos mitos era idêntica em qualquer canto da Terra, confirmando que a estrutura mental da humanidade é a mesma, independentemente da raça, do clima ou da religião. A partir daí, criou o conceito de sociedades “frias” (primitivas), que se encontram “fora da história”, orientando-se pelo modo mítico de pensar, em que o mito é definido como uma “máquina de supressão do tempo”; e as sociedades “quentes” (civilizadas), que se movem dentro da história, com ênfase no progresso e na constante transformação tecnológica.
Se a ciência racionalista desprezava a mitologia, a magia e os rituais, Lévi-Strauss mostrou que esses eram recursos de uma narrativa da história tribal, expressões legítimas de manifestações de desejo e, por isso, análogas à ciência moderna, ainda que atingindo resultados diversos.
Após os terrores da Segunda Guerra, fazia sentido que sentisse admiração pelos povos primitivos, já que foi entre eles que encontrou a fraternidade. Ao mesmo tempo, ensinava que era impossível esquecer-se do conceito das diversidades e, logo, não se podia olhar para outras sociedades tomando como parâmetro a própria, afirmando superioridade sobre os chamados “primitivos”. Mais: era preciso reconhecer a força desses povos, capazes de elaborar uma sabedoria particular que os incitava a resistir a qualquer modificação de sua estrutura – que embora pudessem configurar, para muitos, uma sociedade sem progresso e parada, privilegiava a preservação da natureza, as regras matrimoniais destinadas a manter a fecundidade e o princípio político que abolia qualquer forma de decisão que não fosse baseada na unanimidade.
Para o antropólogo, o “pensamento primitivo” era, longe de simplista, algo complexo, sofisticado e que tendia mais à ordem do que as idéias de organização e progresso que as sociedades modernas estabeleciam como parâmetro, fatos que, para ele, podem ser fonte de desequilíbrio social entre seres humanos.
Passou então a atacar a “ilusão arcaica”, a crença de que o pensamento dos “povos primitivos” poderia ser comparado ao das crianças, como se eles fizessem parte da “infância da humanidade”, e as sociedades modernas, da fase adulta e madura. Ou seja, ensina que tudo o que é diverso de nós é tachado de “infantil” e “primitivo”, um erro grave e preconceituoso, resultado de uma típica visão distanciada que, no fundo, é fruto de uma relação entre dominantes e dominados.
Matéria de Carlos Haag publicada na Revista da Cultura, edição 16, novembro de 2008.
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