terça-feira, 29 de setembro de 2009

Lembrar Machado

Cento e um anos atrás, a 29 de setembro de 1908, falecia o escritor Machado de Assis.

Objeto de estudos inesgotáveis, a obra de Machado de Assis constitui valioso patrimônio da cultura e da literatura mundial, sendo, portanto, motivo de orgulho para a Nação brasileira.

Impossível falar desse patrimônio sem lembrar a figura que o construiu. E fazê-lo nos coloca diante de indagações que, mesmo passado mais de um século do falecimento do magistral escritor, mesmo depois de buscas obstinadas, permanecem sem resposta.

Como pôde o menino pobre, mestiço, epilético, gago, órfão, sem acesso ao ensino regular, instruir-se de tal modo a transformar-se em insigne escritor, no mestre fundador da Academia Brasileira de Letras?

O que terá feito o moço tímido para fazer-se íntimo de grandes nomes da literatura de então, por exemplo, José de Alencar, Joaquim Manuel de Macedo e Gonçalves Dias?

De que forma pôde Joaquim Maria Machado de Assis fazer-se homem tão destacado, se desde o berço o desfavorecimento parecia condená-lo a uma vida insossa, ao destino malfadado de tantas outras vítimas da desigualdade social que, no século XIX, recrudescia ao abrigo de uma sociedade inculta, escravagista, patrimonialista, estratificada, ansiosa por manter antigos privilégios?

Prescrutados seus escritos, muitos outros mistérios emergem – e seguem insolúveis, mesmo sob a lupa de estudos apaixonados e determinados.

Certamente, não fossem o talento, a obstinação e muitos outros fatores que fogem à nossa percepção, talvez a sorte daquele moleque do Morro do Livramento se assemelhasse à de tantos meninos e meninas de hoje, vítimas da injustiça social neste Brasil de contrastes, de desigualdades que nos fazem corar, envergonhados de nossa pequenez e de nossa ação quase sempre inócua, incapazes que temos sido de alterar essa secular realidade, de construir uma sociedade de fato justa, como preceitua nossa Carta Magna.

Mas voltemos ao menino José Maria, ao jovem Machadinho, ao grande escritor Machado de Assis. Tentemos desvelar um pouco dessa intrigante biografia, ainda que sem a pretensão de encontrar respostas para as seculares indagações.

Joaquim Maria Machado de Assis nasceu a 21 de junho de 1839, no Morro do Livramento, filho de um pintor de paredes, descendente de escravos, e de uma imigrante açoriana. Órfão de mãe ainda infante, foi criado pela madrasta, com trânsito frequente pela casa da madrinha, com quem aprendeu as primeiras letras.

Sem acesso à educação formal, fez-se autodidata, tornou-se leitor voraz, escritor aplicado, mestre das Letras nacionais e atento estudioso de outros idiomas, principalmente inglês e francês, por intermédio dos quais imergiu no universo literário de autores até então desconhecidos no Brasil, chegando a traduzir alguns deles.

Ainda criança, vendia balas e doces e trabalhava como engraxate, para ajudar no próprio sustento.

Aos dezesseis anos, conseguiu trabalhar como aprendiz em uma tipografia e publicou o poema “Ela”, sua primeira produção conhecida. Logo depois, foi trabalhar na Imprensa Nacional, como tipógrafo, e na Revista Marmota Fluminense, como revisor.

Em seguida, foi caixeiro e revisor, na Tipografia e Livraria Paula Brito; jornalista e colaborador do Correio Mercantil, de A Estação, da Gazeta de Notícias e da Semana Ilustrada; crítico literário, na coluna Semana Literária, do Diário do Rio de Janeiro; ajudante do Diretor do Diário Oficial; funcionário público, com cargo na Secretaria da Agricultura, Comércio e Obras Públicas.

Mas, sobretudo, Machado fez da leitura e da escrita seu cotidiano, canteiros de cultivo do talento ímpar, moldando, ainda moço, estilo próprio, que se destaca pela linguagem concisa, elegante, pela urdidura textual impecável, impregnada de fina ironia, análise acurada e crítica irretocável à futilidade, à falsidade, à retórica vazia.

Em seus textos, via de regra, os personagens trazem ao leitor a possibilidade de diálogo e de reflexão acerca da essência do homem, de sua precariedade existencial, do eterno confronto da humanidade com seu destino. Criou o que hoje chamamos de estilo machadiano, que intriga e encanta quantos dele se aproximem.

Arguto observador dos usos e costumes do seu tempo, registrou as questões políticas e sociais, a transformação dos costumes, a chaga da escravidão, a transição para a República. Fez isso com maestria, não só à luz de uma visão restrita, mas também de uma observação atenta do que se passava no resto do mundo.

Cronista e contista irretocável, foi pelo romance que Machado comprovou, de modo cabal, o talento que o faria imortal. Depois da inserção no Romantismo, que lhe rendeu o reconhecimento, Machado surpreendeu a todos ao lançar, em 1881, as Memórias Póstumas de Brás Cubas, um “defunto autor” que narra, ele mesmo, sua vida a começar pela própria morte. Machado inaugurava assim nova época literária, depois conhecida como Realismo.

Depois, publicou Quincas Borba, em 1891, onde filosofia e sandice condimentam as lições do protagonista e, em 1889, Dom Casmurro, história aparentemente trivial, mas complexa a ponto de deixar para sempre um enigma a tragar os leitores: afinal, Capitu traiu ou não traiu? Uma trilogia imbatível.

Mesmo com a saúde abalada, continuou prolífero e, além de livros de poemas e contos, publicou dois romances – Esaú e Jacó, em 1904, ano da morte da esposa Carolina, sua companheira inseparável durante 35 anos.

Por fim, já vencido pela amargura da viuvez, transformado de vez no bruxo do Cosme Velho, publicou Memorial de Aires, em 1908, pouco antes da própria morte, ocorrida a 29 de setembro daquele ano.

A obra de Machado é volumosa, densa, surpreendente, magnífica, e abrange gêneros literários díspares. São mais de 600 crônicas, 700 páginas de poesia, além de romances, contos, críticas, traduções, peças de teatro, cartas, enfim, um universo no qual não imerge um leitor sem que o vírus do estilo ímpar lhe seja inoculado de modo irreversível.

Ler Machado de Assis não pode e não deve ser obrigação. Ler Machado de Assis é prazer.

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